São Sebastião, tijolo por tijolo
Maria Leontina, 70 anos, lembra como era precária a vida no início da cidade: "Nós capinamos um lote. A cada machadada, uma cobra aparecia" |
Foi da pequena Agrovila São Sebastião que saiu parte dos tijolos que deram consistência aos sonhos de Oscar Niemeyer e Lucio Costa. A vocação da hoje região administrativa manifestou-se desde os primórdios, há quase 60 anos, quando começou a ser povoada. A cidade nasceu da desapropriação parcial de três fazendas de Luziânia (GO). “O processo começou por volta de 1955, quando foi montada uma comissão do governo de Goiás para executar o trabalho. Nesse período, todas as fazendas do DF eram particulares — elas foram compradas e doadas à União. Tudo para acelerar o processo de construção de Brasília”, explica Gustavo Chauvet, ex-diretor do Arquivo Público do Distrito Federal.
Um ano após o início das obras da nova capital, ao menos 10 olarias foram instaladas na agrovila. Além delas, 20 pipas para o tratamento do barro e quatro cerâmicas, onde eram feitos os tijolos industriais. As famílias traziam consigo não apenas a força dos braços, mas sonhos de uma vida melhor. Aos 73 anos, Maria Leontina de Jesus é uma das primeiras moradoras de São Sebastião. A mineira de Patos de Minas chegou à cidade aos 19 anos, na companhia do marido. “Moramos em Unaí e no Gama, mas lá não tinha serviço. Viemos tentar a sorte em São Sebastião e conseguimos trabalho em uma olaria. Era a única coisa que tinha na cidade e eu aprendi trabalhando, cortando tijolo”, conta.
Carmen de Souza cortava os tijolos de madrugada: apesar de tudo, uma boa lembrança. |
O corte de tijolos começava de madrugada, por volta de 1h, e só terminava sob o sol das 10h. Ainda pela manhã, os caminhões das construtoras partiam, carregados com mais de 1 mil blocos maciços. Apesar do trabalho pesado, Maria Leontina guarda boas lembranças. “A vivência foi muito boa, fiz muitas amigas. Tínhamos filhos e, como a gente não podia comprar muita coisa, soltávamos os meninos para brincar e íamos cortar tijolos”, relata. A oleira ficou no ramo por mais de 10 anos. Quando o galpão para o qual prestava serviço fechou as portas, passou a ser empregada doméstica.
A extinção dos galpões está relacionada aos avanços do Plano Piloto — em meados de 1980, as principais obras estavam concluídas. “As pessoas que trabalhavam nas olarias fechadas não tinham para onde ir e começaram a se fixar nas margens do Córrego Mata Grande e do Ribeirão Santo Antônio. Assim se formou a Agrovila São Sebastião”, detalha Gustavo Chauvet.
Acima, três fotos históricas coletadas pelo projeto: iniciativa supriu a ausência de um acervo organizado. Todos os moradores estão convidados a colaborar com suas lembranças e experiências |
Hoje, São Sebastião conta com 100.161 habitantes, de acordo com a mais recente Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio. A maior parte deles (53,84%) veio de Minas Gerais, Bahia e Maranhão. Moradora da cidade desde 1963, Carmen Souza, 70 anos, vê com bons olhos o desenvolvimento na região. “Ficou muito bom. Antes, era tudo muito difícil”, conta. Mineira de São Gotardo, ela chegou para visitar um tio e nunca mais voltou. É que, durante a passagem, Carmen se encantou por um oleiro recém-chegado do Piauí.
Casaram-se e tiveram cinco filhos. Com restos de tijolos, cedidos pelo patrão dele, construíram uma casinha de dois cômodos. “Antes de ele conseguir esse trabalho, nós capinamos um lote. A cada machadada que dávamos, uma cobra aparecia. Também chegamos a ficar um mês comendo só abóbora e feijão, sem tempero algum”, relata. Segundo a pioneira, as novas gerações sequer imaginam como eram as condições de vida. “Eu conto para os meus netos e eles fazem é rir. Não acreditam de jeito nenhum que era desse jeito”, observa.
O passado retorna
São histórias como a de Maria Leontina de Jesus e Carmen Souza que um grupo de moradores e ativistas culturais pretende preservar. Criado em 2010, o projeto Memórias Oleiras colhe documentos, fotos antigas e depoimentos de pioneiros de São Sebastião. A ideia surgiu da cabeça de Edvair Ribeiro, 56 anos, ex-oleiro, poeta e cronista. Ele se considera um griô, ou seja, um guardião da cultura oral. Sua principal preocupação era que as origens da região fossem esquecidas. “Tinha muita gente com conteúdo, mas que estava à margem da sociedade. A ideia do projeto é trazer narrativas e vivências de pessoas que tiveram experiência na construção da cidade”, resume.
Edvair uniu esforços com integrantes do Movimento Cultural Super Nova. Em 2016, conseguiram recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Com esse aporte, mapearam 350 pioneiros e passaram a organizar a memória da cidade. Atualmente, o projeto é desenvolvido por 16 membros, incluindo fotógrafos, cinegrafistas e pesquisadores. O designer Ricardo Caldeira, 28 anos, explica que o trabalho reforçou seus laços com São Sebastião. “Durante a infância, eu tinha vergonha, por associar a cidade à pobreza. A partir da adolescência, passei a me sentir pertencente e a ter orgulho”, relata. “Entendi que a forma como a cidade é retratada é reflexo de diversas desigualdades, e eu faço parte de um conjunto de agentes que transforma essa realidade.”
A riqueza cultural de São Sebastião foi o que chamou a atenção do produtor audiovisual Gustavo Serrate, 35 anos. O morador da Asa Norte aderiu ao projeto em janeiro passado e diz que o processo tem sido extremamente gratificante. “A gente só pensa Brasília como a realidade fechadinha do Plano Piloto, mas existem raízes. O Memórias Oleiras é um museu de pessoas e de histórias — ele enriquece muito a visão do que é São Sebastião e, consequentemente, do que é Brasília”, acredita.
Até o momento, a equipe entrevistou cerca de 30 pioneiros. Os pesquisadores têm pressa em avançar, pois a maioria deles é idosa — 56 deles faleceram desde o início dos trabalhos, sem terem sido ouvidos. Todos estão convidados a contribuir. Fotos de época podem ser enviadas no e-mail memoriasoleiras@gmail.com. O site www.memoriasoleiras.com.br reúne todos os achados.
Realizadores locais
O movimento cultural Supernova nasceu em 2003, com o objetivo de dar visibilidade a artistas de São Sebastião. No início, eram realizados sarais mensais. Depois, vieram projetos maiores e ao ar livre, como o Domingo no Parque, a Noite Supernova, o Superrock e o Vôlei Supernova.
Nascimento de uma R.A.
Até junho de 1993 a cidade era considerada parte do Paranoá, mas a partir da Lei nº 467 de 25 de junho, foi instituída R.A. XIV.
Nenhum comentário:
Os comentários nos artigos do blog são, sem dúvida, a principal forma de contato entre o visitante e o autor e deve ser sempre um canal aberto. Comente-o.