Cidade das gambiarras
A Estrutural se revela como um dos símbolos
da forma como acontecem as ocupações irregulares no Distrito Federal. Após a
invasão e a consolidação do local, o Estado se vê obrigado a investir em
equipamentos públicos a fim de evitar uma situação ainda pior
A história de uma família cuja trama de vida se misturava ao
lixão e que virou sucesso absoluto em uma novela de televisão é a realidade de
uma cidade do DF. Nascida em cima do chorume de montanhas das sobras da capital
federal, a invasão da Estrutural se consolidou como região administrativa com
32,1 mil habitantes prestes a ganharem do governo a certidão de nascimento das
moradias. As escrituras de registro das casas serão entregues antes da solução
definitiva para danos ambientais, da consolidação do projeto de urbanismo e da
instalação dos equipamentos considerados essenciais pelo poder público.
O lixo atraiu em 1997 um grupo de 520 catadores que moravam
onde hoje funciona o complexo da Cidade do Automóvel, na mesma localidade, a
poucos minutos da Estrutural. Sob a pressão dos interesses econômicos, as
famílias foram transferidas para a vizinhança do lixão. Ali, ergueram barracos
sob o olhar complacente da fiscalização oficial. Uma vez lá, não saíram mais,
insufladas por líderes que agiam em nome de políticos e de especuladores
imobiliários interessados em ocupar, forçar a permanência e lucrar com a
valorização que vem da consolidação da área.
Dos 500 catadores, fez-se uma comunidade que passou anos
vivendo de forma precária. Em uma década e meia, boa parte da cidade se
consolidou. Há um centro de saúde, um restaurante comunitário, um posto da
Polícia Civil e outro eleitoral, creches e comércio. Mas a cor da Estrutural
ainda é o marrom. O cheiro, em parte dela, continua a ser o de lixo. Moscas
rondam crianças, sucatas estão na porta das casas, várias de madeirite. A cada
10 moradias, duas usam fossa séptica ou um buraco no chão. Os dejetos vão direto
para o solo e se misturam ao lençol freático. Em grande quantidade, contaminam
o Córrego Cabeceira do Valo, que deságua no Lago Paranoá, uma das fontes de
abastecimento de água potável a médio prazo.
A Estrutural é um caso clássico da ditadura da grilagem.
Primeiro, houve a ocupação irregular, sem planejamento. Depois, o Estado foi
obrigado a intervir sob o risco de comprometer o futuro do DF. É assim que a
história da capital mostrou como funciona. A ocupação desordenada leva a uma
situação consolidada por força da contingência. Nesse contexto, há centenas de
famílias que dependem da mão do governo para sobreviver, mas também há centenas
de oportunistas que se especializaram em ocupar para demarcar um espaço na
terra e, em seguida, vender ou faturar com aluguéis.
O chefe de gabinete da Administração Regional da Estrutural,
Valcir Costa, conhece como poucos a situação do lugar. Mora na cidade há 12
anos. Denuncia que é no período de festas de fim do ano que os invasores se
aproveitam da distração das autoridades. Por isso, a Estrutural não para de
crescer, inclusive sobre uma área chamada de tamponamento, demarcada como zona
de proteção ambiental do Parque Nacional, vizinho à cidade. “Entre o Natal e o
ano-novo, dá tempo de ocupar, construir o barraco e vender”, disse Valcir, que
promete reforçar a fiscalização nas próximas semanas.
Valcir é o braço do Estado que tem de conter a invasão. Mas
ele mesmo está construindo um prédio no lote de 300 metros quadrados que há
pouco mais de uma década comprou por R$ 12 mil em área nobre da Estrutural, a
menos de 50 metros da pista que liga o Plano Piloto a Taguatinga. O terreno não
vale menos de R$ 250 mil. Mas em pouco tempo, tão logo esteja com a escritura
em mão, custará bem mais, especialmente quando concluir a obra do edifício de
quatro pavimentos que tem a base erguida.
A estrutura de ferro armado do prédio de Valcir foi toda
comprada dos catadores. Hoje chefe de gabinete, ele prestava serviço de
eletrônica como terceirizado para a Câmara dos Deputados. Morava em Cidade
Ocidental, em Goiás, mas cansou da rotina de perder horas no trânsito. Decidiu
procurar moradia mais perto do centro de Brasília. Tentou Taguatinga, Guará e
Vicente Pires, só que achou os preços inacessíveis.
Juntou-se aos ocupantes da
Estrutural e, assim como os 32 mil moradores, aguarda ansiosamente a escritura,
com informação quentinha de que os documentos estão prestes a sair. “Três mil
pessoas do Setor Leste, uma área especial, cujos nomes já saíram no Diário
Oficial, estão aptas a receber a escritura de registro. Só falta o governador
marcar a solenidade de entrega”, disse Valcir.
Agnelo Queiroz (PT) tem feito questão de ir pessoalmente,
aos fins de semana, acompanhar Geraldo Magela, o secretário de Habitação, nas
entregas das certidões de propriedade. “Também terei a escritura, mas vou pagar
o preço do terreno ao governo”, pondera Valcir.
Ajuda do governo
É visível que o Estado chegou à Estrutural. Com o dinheiro
de uma contrapartida acertada com o Banco Mundial (Bird), há várias obras
públicas feitas e outras em acabamento. Mas o governo ainda não conseguiu
sintonizar as necessidades de uma comunidade nascida às avessas com as
iniciativas oficiais. Há um Centro Olímpico tinindo de novo na localidade, obra
que destoa dos restos jogados ao lado do complexo esportivo. Mas às 11h30 de
uma manhã de segunda-feira, com céu azul e temperatura de 28ºC, o espaço
inaugurado há um ano para basquete, futebol, vôlei e ginástica estava
totalmente ocioso. Crianças perambulavam de pé descalço em ruas ainda sem
asfalto vizinhas ao lugar.
Jessica Adriana, 14 anos, é uma das potenciais alunas do
Centro Olímpico. Mas ela e os quatro irmãos estavam em casa quando a reportagem
abordou a família. Mora a três minutos do complexo, mas não desfruta das
atividades esportivas. Nem ela nem outras 2 mil crianças. Essa, segundo a
Administração Regional da Estrutural, é o número de vagas a serem ocupadas. A
maioria deixa de ir por dificuldade de apresentar documentos na inscrição e
pela falta de incentivo. “Muitos moradores da Estrutural não estão acostumados
a formalidades. É preciso uma ajuda do governo para fazer um trabalho de
divulgação e de conscientização”, explica o chefe de gabinete da administração
da cidade,Valcir Costa.
A Estrutural é o retrato do que o governo terá de enfrentar,
em escala até maior, no Sol Nascente, que fica na região administrativa de
Ceilândia. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) do ano passado, essa é a segunda maior favela do Brasil. Só perde para a
Rocinha, no Rio de Janeiro. A ocupação em área de proteção ambiental, em meio a
nascentes, no coração do país, surgiu também incitada por lideranças políticas
entre 2000 e 2002.
Levantamento do IBGE indicava que em 2011 eram 56.483
habitantes. Gerente de condomínios de Ceilândia, Major Carlone Batista da
Silva, acredita que a população do Sol Nascente e do Pôr do Sol, outra área de
invasão da cidade, chegue a 120 mil pessoas. “Estamos dando estrutura, um dos
três trechos já tem esgoto residencial e vamos acabar com as gambiarras”,
relata o policial militar. “Ainda há muitas tentativas de invasão. Na semana
passada, de um dia para o outro, 13 casas foram erguidas e tivemos de
intervir”, conta.
Deputado distrital com base de eleitores em Ceilândia, o
petista Chico Vigilante conta que um major foi escolhido pelo governo
justamente para conter as invasões. “A situação lá era muito precária. Quando o
Agnelo assumiu, todas as ligações elétricas eram irregulares, ninguém pagava
energia. Agora, a CEB já fez 25 mil ligações”, afirma.
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